quinta-feira, 3 de junho de 2010

Vampiros, quadrinhos brasileiros e filmes



Com o recente relançamento em formato graphic novel da adaptação de Eugenio Colonnese para o Drácula de Bram Stoker, achei relevante colocar no blog um texto que escrevi para o B Zine em 1994. Atualizado e corrigido, tem a pretensão de instigar os pesquisadores a traçarem as relações entre as histórias em quadrinhos de horror brasileiras e suas relações com o cinema, que são muitas. Desde as capas, freqüentemente feitas a partir de cartazes de filmes e lobby cards (aquelas fotos promocionais que antigamente figuravam ao lado dos cartazes), passando pela recriação pelos habilidosos desenhistas de cenários e personagens, até a citação explícita de elementos narrativos de várias produções.



Desde que o Drácula de Bram Stoker foi publicado em 1897, a figura do vampiro ganhou projeção nos meios de comunicação e na indústria de entretenimento. No cinema são inúmeras as produções relacionadas ao tema, assim como na literatura encontramos uma grande diversidade, tanto do ponto de vista ficcional quanto teórico.

Nas histórias em quadrinhos Drácula foi representado das mais diversas formas por roteiristas e desenhistas mundo afora, algumas vezes em títulos periódicos, outras em edições especiais. Os anos 1960 e 70 foram bastante promissores para os vampiros nas HQs. Aficionados por quadrinhos de horror e que cresceram naquele período certamente irão lembrar-se da História de Drácula (Dube/Tom Sutton) publicada no número um da extinta revista Kripta (RGE - 1976), além das aventuras do conde em revista própria publicada pela Marvel (Marv Wolfman /Gene Colan) e aqui lançada na série Capitão Mistério da Bloch Editores como A Tumba de Drácula.

O mais interessante é que foi no Brasil, pelas mãos dos nossos artistas, que o Conde Drácula alçou seus mais altos vôos em singulares narrativas, devendo-se a isso muita ousadia e certa (perdoável na maioria dos casos) falta de critério.

O quadrinho de horror ainda tinha, naquela época, lugar no mercado nacional. Através dele muitos desenhistas e roteiristas tornaram-se conhecidos e puderam ter seu material publicado. Desde que Terror Negro, a primeira revista completa do gênero foi publicada em 1951 pela editora La Selva, os títulos e editoras se multiplicaram, atingindo seu auge nos anos sessenta e início dos setenta. Aderiram ao filão a GEP, Edrel, Continental, Taika, Roval, sendo a D-Arte, de Rodolpho Zalla, com as revistas Calafrio e Mestres do Terror, o último bastião.

Drácula sempre se destacou em toda essa produção e graças à paulista Editora Taika ganhou um lugar permanente na história do quadrinho de horror nacional. Sendo memorável, por exemplo, a adaptação (por sinal bastante fiel) do romance de Stoker por Francisco de Assis e arte de Eugenio Colonnese, relançada por esses dias pela editora Escala, em caprichada versão colorizada. Um belo trabalho no qual Colonnese recria em nanquim toda uma atmosfera gótica bastante inspirada nos filmes da Hammer. O próprio Drácula de Colonnese é muito semelhante à caracterização de Christopher Lee (apesar de ganhar as feições do astro Marlon Brando, de acordo com texto que acompanha a nova edição), se diferenciando da descrição do vampiro de Stoker.

Mas a melhor e mais original encarnação de Drácula nos quadrinhos brasileiros está nas páginas produzidas pelo prolífero desenhista Nico Rosso para a Editora Taika. Sem dúvida alguma foi esse saudoso artista quem melhor retratou o velho morcegão dando forma aos argumentos de Helena Fonseca e Maria Aparecida de Godói, responsáveis por conferirem ao vampiro uma personalidade única, forte e diferente das demais caracterizações. Seus roteiros, se geralmente estavam repletos dos habituais clichês do gênero e explicitavam evidente influência dos filmes de horror do período, eram marcados por uma vitalidade e originalidade que superavam essas inspirações. Provavelmente cinéfilas, se apropriavam de personagens e narrativas que viam nas telas e as reciclavam de acordo com as tramas que desenvolviam. Talvez o melhor exemplar dessa safra esteja presente na edição especial Drácula (Spell Produções Editoriais - junho/76), um excelente trabalho gráfico de nível nunca visto nos quadrinhos de horror nacionais, com três histórias desenhadas por Nico Rosso e Kazuhiko Yoshikawa – uma em cores -, e textos de Maria Aparecida de Godói (equivocadamente atribuídos ao também parceiro de Rosso, Rubens Lucchetti, no artigo “Quadrinhos de Sangue”, da reedição do Drácula de Colonnese pela Escala).

A primeira, que nos interessa, é dividida em três partes: Fecundação Satânica, O Herdeiro das Trevas e O Homem de Carlsbad. A origem de Drácula é recontada de maneira original, a partir de uma cerimônia satânica, quando a Condessa Asa Van Essen é sacrificada. Seu filho Draco tempos depois volta da batalha contra os mouros e sabe por intermédio de seu pai do destino trágico da mãe e de sua vingança contra os bruxos. Satã reanima o cadáver do líder do sumo-sacerdote, Javuto, que vai ao castelo e mata o Conde. Draco encontra o corpo do pai e, incentivado pela criada com quem tivera alguns momentos de amor, vai em busca do fruto da imortalidade, gerado pela seiva da “árvore maldita”. Satã aparece e diz que a seiva da árvore e os frutos são do sangue do ventre de sua mãe. Ele agora é o herdeiro das trevas, sendo a primeira vítima Vaena, a criada. A história termina com ele se apresentando como o Conde Drácula. Como sabemos, os personagens Asa e Javuto pertencem ao clássico de Mario Bava, A Máscara do Demônio (La Maschera Del Demonio /1960).

Outras produções serviram de fonte para autoras como, entre outras, O Circo dos Vampiros (Vampire Circus /1972), Atom Age Vampire (1960) e Museu de Cera (House of Wax /1953), reaproveitadas respectivamente para as HQs O Estranho Mágico, O Vampiro do Espaço e Museu de Cera.

As histórias de Fonseca e Godói traziam um Drácula sacana e divertido, ao mesmo tempo em que era a própria encarnação da maldade. Sua violência, vaidade e egocentrismo se desenvolviam nas mirabolantes aventuras, em planos maldosos para tornar-se cada vez mais poderoso e assim infligir maiores tormentos aos seres humanos. Não tinha nenhum sentimento de culpa ou amargura por sua condição de vampiro, coisa tão habitual nas atuais produções literárias e cinematográficas sobre o tema, em que sanguessugas relutantes choramingam pelos cantos. Sua presença causava medo nas vítimas e ele não tinha nenhum charme sedutor, muito pelo contrário. Seu aspecto era velho e mofado. Também raramente transformava alguém em vampiro. Egoísta, não desejava concorrentes. Queria ser único. Só o fazia caso fosse necessário para atingir algum objetivo, e mesmo assim de modo que esse novo vampiro não pudesse prejudicá-lo. Era comum, portanto, após beber o sangue de suas vítimas, enfiar ele mesmo uma estaca nos cadáveres. Os roteiros geralmente tinham um tom irônico, satírico até, mas mantinham seu clima de maldade presente. A continuidade bem estruturada era fiel às características principais de Drácula, mesmo que freqüentemente algumas liberdades fossem tomadas. Criava-se assim uma identificação com o leitor, mantendo o interesse. Essas características se mantinham, fossem nas histórias ambientadas em séculos anteriores como nas passadas em tempos atuais. Onde, inclusive, transitavam personagens recorrentes: o detetive Fred Carson (o nêmesis do conde), sua namorada Mary e o inspetor de polícia Barney. Mary é filha de um cientista que revive Drácula e é morto por ele. Fred, noivo da garota, jura perseguir o vampiro até conseguir eliminá-lo. Já o inspetor tem a marca do vampiro. Quando morrer deverá ter o coração atravessado por uma estaca para não se transformar, daí sua sede de vingança contra Drácula. Outro ponto importante, não muito presente nos quadrinhos feitos por aqui, foi a utilização de uma linha narrativa seriada, com histórias que continuavam nas edições seguintes.

O traço de Nico Rosso se adequou perfeitamente à personalidade criada pelas escritoras. Do mesmo modo conseguiu traduzir a ambientação gótica dos filmes da Hammer e AIP para os quadrinhos, na recriação de cemitérios, castelos, monstros e afins. Suas cenas de cerimônias satânicas e infernos, ousadíssimas para a época, com nudez, criaturas deformadas, monstruosidades e demônios remetem às composições de pintores como Bosch e Brueghel. Outro ponto alto do desenhista são as figuras femininas. Fossem inocentes vítimas ou ardilosas e malvadas, todas eram voluptuosas e sensuais. Se deixavam Drácula maluco, o que dizer então do efeito que causavam nos moleques de uma época quando toda a nudez era realmente castigada? Em tempos de censura era gratificante ver Rosso tirar a roupa de suas gatas, totalmente ou em partes, durante o decorrer da ação.

É triste constatar que, apesar do bom momento para os quadrinhos no país – nunca tantos títulos foram lançados em bancas e livrarias como nos últimos anos – pouco se fez em relação à fase áurea da HQ de horror. É verdade que tivemos um pouco da Mirza (também do Colonnese), uma edição comemorativa da Calafrio, outra do Lobisomem do Gedeone Malagola... Que a inesperada reedição do Drácula do Colonnese não seja apenas uma publicação destinada a capitalizar em cima do modismo dos vampiros da “Era Crepúsculo”, mas o prenúncio de uma revitalização de fase importante de nossa arte seqüencial.

Tsc, tsc... A quem estou enganando se nem eu acredito nisso!