quarta-feira, 19 de maio de 2010

Santidades e diabruras: O Monge, versões 1972 e 1990.



Considerado um dos grandes clássicos (e um dos mais horripilantes) da literatura gótica, O Monge (The Monk / 1796), de Matthew Gregory Lewis, escandalizou a sociedade da época não só por adicionar aos já recorrentes elementos do gênero uma forte crítica social e religiosa, mas também por incluir cenas de sexo, violência e sadismo. Suas controversas descrições de corrupção e luxúria envolvendo padres e freiras, feitiçaria e os desmandos da brutal Inquisição fizeram com que o autor fosse obrigado, logo na segunda edição - a primeira rapidamente se esgotou – a retirar alguns trechos considerados por demais obscenos. Não é à toa que Lewis foi incensado por personalidades como Lord Byron e o Marquês de Sade.

O romance, que segundo H.P. Lovecraft em seu obrigatório O Horror Sobrenatural na Literatura (Francisco Alves, (1987) eleva o horror literário a um novo grau de virulência, conta a cativante história do monge Ambrosio dos Capuchinhos de Madri que, caindo em tentação, acaba perdendo a sua alma em uma trilha de crimes e profanações.

A narrativa, ainda de acordo com Lovecraft uma obra-prima de pesadelo vivo em que o cunho geral gótico é exacerbado por doses adicionais de diabolismo, foi adaptada para o cinema duas vezes. Nenhuma das quais, diga-se de passagem, com coragem suficiente para retratar fielmente os episódios macabros e ultrajantes da obra literária. A primeira versão, Le Moine, de 1972, traz o emblemático Franco Nero na pele do torturado padre Ambrosio. Com direção de Adonis (Ado) Kyrou a partir de roteiro escrito por Luis Buñuel (que originalmente desejava levar o romance às telas) e Jean-Claude Carrière, conta a literal descida aos infernos do sacerdote Ambrosio, pilar da Igreja que inflamava a audiência com suas pregações de caráter moralista. Inspirado orador, destila sua verve vigorosa contra os que se desviam do caminho ordenado pelo clero e defende a punição severa para os pecadores e hereges. As coisas se complicam para o sacerdote quando a jovem Matilde (a belíssima Natalie Delon) entra em sua vida travestida em um jovem noviço. Não resistindo às investidas da moça, o padre Lorenzo rende-se aos prazeres do sexo, tornando-se um amante contumaz. Inicialmente dividido entre a culpa e o desejo, acaba deixando aflorar seu lado lúbrico e perverso, que se direcionam para a filha adolescente de uma paroquiana. Disposto a empregar todos os meios para alcançar o seu objetivo, acaba em conluio com a amante - que na verdade revela-se uma emissária de Satã – recorrendo à magia negra, culminando seus atos em tentativa de estupro e assassinado. Descoberto, é encarcerado pela Inquisição, sendo julgado por seus crimes e torturado. Entretanto, após assinar um pacto com o Diabo, termina livre e alçado ao mais alto posto da Igreja: o trono de São Pedro. Le Moine conta com algumas cenas de nudez e de sexo bastante contidas.

A produção, ainda que conte com uma direção pouco inspirada (é interessante imaginar como Buñuel trabalharia esse rico material), consegue prender a atenção pela instigante narrativa, a atmosfera construída na justaposição do ambiente religioso com desejos reprimidos e a aura de sensualidade que exala da pérfida Matilde. Tudo reforçando no filme seu caráter anticlerical, que chega ao clímax como uma bofetada no espectador (principalmente os cristãos), quando Ambrosio se retira da câmara de torturas, santificado por seus algozes, e se dirige para a luz no final do corredor da masmorra. Revelando tomadas atuais - no caso dos anos 1970 - da Praça de São Pedro apinhada de gente. Na sacada do palácio, o padre Ambrosio com vestes papais abençoa o povo.

Também com o mesmo título do romance original, a segunda versão é uma co-produção anglo-espanhola datada de 1990, roteirizada e dirigida por Francisco (Paco) Lara. A história é a mesma, com o padre Lorenzo (Paul McGann) – inexplicável troca do nome do protagonista – como o firme defensor das leis da Igreja que acaba nas garras da lúbrica Matilde, que nessa adaptação conta ser apaixonada por ele desde que presenciou uma de suas pregações, travestindo-se em jovem noviço e juntando-se à ordem religiosa dos Capuchinhos para ficar ao seu lado. Ainda que envolvente e bem construído, O Monge de Paco Lara poderia ter explorado melhor o caráter medieval – mais bem trabalhado no filme de Kyrou - e a ambiência gótica, que fica prejudicada em detrimento à ênfase nos conflitos existenciais do padre, na hipocrisia católica e na crítica à Igreja enquanto estrutura de poder. O que faz com que seja menos fiel ao romance de Lewis e fique bastante diluído o elemento sobrenatural da narrativa. É o caso da revelação de Matilde como entidade demoniíaca, lado pouco explorado do personagem e que poderia dar mais tempero à narrativa. Destaque para a seqüência onde a mulher (interpretada pela deliciosa Sophie Ward) protagoniza uma cerimônia na qual lança um feitiço em meio a um círculo flamejante na cripta do convento. As cenas de sexo são discretas e de modo algum apelativas, com a nudez parcial da atriz principal, sendo também contidos os trechos mais violentos. Contudo, o grande problema do filme é o final, quando o padre Lorenzo é levado á fogueira, condenado pela Inquisição. Num arroubo de conservadorismo do diretor-roteirista, o padre renega Satã e é consumido arrependido pelas chamas. Radicalmente diferente da versão de 1972 e de acordo com a caretice reinante na passagem dos anos 1980 para a década de 1990.