terça-feira, 10 de novembro de 2009

A noite das taras do rei da pornochanchada.


David Cardoso não é só um cara esperto, mas corajoso também. Tanto que trocou uma promissora e segura carreira como galã de telenovelas pelas incertezas de abrir uma produtora para atuar na instável cena cinematográfica brasileira e se tornar “o rei da pornochanchada”. O resultado foi a DaCar, certamente a mais rentável companhia que enveredou na linha de filmes eróticos com Caçada Sangrenta (1976) e atravessou a melhor fase da Boca do Lixo, até meados da década de 1980 quando se rendeu aos filmes de sexo explícito. Cercado de talentosos colaboradores, esmero técnico e principalmente mulheres bonitas, Cardoso não só conseguiu invejosas cifras nas bilheterias, como também foi responsável por algumas obras bastante singulares, não só pela ousadia, mas pelos temas abordados. Dessa filmografia, destacam-se os filmes divididos em dois ou três episódios. Ainda que irregulares, unem o tino comercial de oferecer ao público na mesma sessão mais de uma história, a exemplo das famosas sessões duplas, com a interessante premissa de multiplicar o número de produções, investindo em filmes de menor duração e por sua vez com um ritmo narrativo mais ágil. O que propiciava agilidade em ter novos títulos no circuito, rendimentos mais rápidos e um mercado de trabalho maior para os atores e técnicos envolvidos. Como e se isso efetivamente se realizou, é outra história. Também são significativos exercícios de gêneros cinematográficos, o que era praticamente impensável no que era realizado pelas “castas superiores” de nosso cinema. Se essas produções da DaCar – como a pornochanchada em geral – perpetuam a grande contradição do exploitation, a visão conservadora de que o sexo leva à perdição, velada na exibição gratuita de nudez e sexo - evidentes chamarizes para um público ávido por sacanagem -, também celebram um cinema corajoso, de iniciativas e independência que não só merecem, como precisam tomar seu lugar na história do audiovisual brasileiro.

A Noite das Taras (1980) é a primeira produção dessa leva, como também a mais bem amarrada, o que é feito através dos personagens principais: três marinheiros de folga na noite paulistana, elos de ligação entre as histórias que formatam o longametragem. O filme começa com cenas no porto de Santos, quando os três marujos desembarcam, animados pelas perspectivas da licença, e rumam para São Pualo.

A narrativa inicial, A Carta de Érico, é dirigida por John Doo. Uma jovem (Patrícia Scalvi) busca coragem para se suicidar no luxuoso apartamento onde vive. Acaba no banheiro onde, nua, decide que o melhor meio seria cortando os pulsos com uma navalha. É interrompida pelo primeiro marinheiro (Arlindo Barreto), que chega com uma carta a ela endereçada por um misterioso personagem, Érico. Este insistira com o marinheiro em uma viela escura de Porto Alegre da importância da carta ser entregue em mãos, pois teria importante papel na vida da destinatária. Confusa por não conhecer nenhum Érico nem nunca ter ido à Porto Alegre, a jovem deixa o marinheiro sozinho e volta ao banheiro sem abrir a carta, com a intenção de completar o serviço. Guiado pelas lembranças de seu encontro com o sinistro Érico, o rapaz acaba impedindo o suicídio. Ele a tira da banheira, dá-lhe uns tapas e logo começam a se bItálicoeijar, entregando-se a uma longa seqüência de sexo. Por fim, de alma lavada resolve ler a carta que, para surpresa de ambos, estava vazia. Concluem assombrados que o estranho tinha na intenção de enviar o marinheiro para salvá-la. O episódio termina com o plano de uma sepultura, com o nome “Érico” gravado. A temática de fundo sobrenatural ou bizarro, ao que parece, era de gosto do roteirista Fraga, pois é recorrente em outras produções da DaCar, como o episódio O Gafanhoto, de Pornô (1981); ou mesmo o pasteleiro serial killer de Aqui, Tarados! (1980).

O segmento seguinte, Peixe Fora d’Água, dirigido por David Cardoso, é uma incursão no noir, sendo interessante ver como seus elementos são bem trabalhados por Fraga e adaptados para o universo da pornochanchada. Na verdade, trata-se de uma nova roupagem para a batida trama da mulher fatal que encontra um otário para servir de bode expiatório para seus planos criminosos. Trata do segundo marujo (Arthur Rovedeer), que perambula pela noite paulistana e desavisado, acaba numa boite homossexual. Não percebe estar sendo seguido por uma mulher (Matilde Mastrangi, fabulosa) e seus capangas. Dois destes puxam briga com o rapaz, que acaba apanhando e sendo jogado na rua. É socorrido pela mulher, que o leva para um hotel e seduz, dando início a uma seqüência de jogos sexuais. Enquanto isso, em outra sala, os três capangas aguardam, jogando cartas, já dando a entender que o marinheiro estava sendo vítima de uma trama em andamento. Após a calorosa seqüência de sexo – provavelmente a mais intensa cena de sexo anal simulado do cinema não explícito -, ela revela ao amante casual seu plano: precisa de ajuda para recuperar suas jóias na casa do ex-marido, tarefa pela qual seria bem recompensado. Simulariam um assalto e como ele não era da cidade e partiria no dia seguinte, não só seria difícil associá-lo a ela, como identificá-lo. Relutante, aceita, seguindo com a mulher e seus capangas para o local onde se efetivaria o crime. Lá chegando, os bandidos matam os empregados, enquanto ela e o marinheiro seguem para o quarto do dono da casa. Ao vê-los, o homem grita impropérios para a mulher, que atira contra ele. O marinheiro assusta-se ao ver o crime, pois acreditava que ninguém sairia ferido. Também não sabia que estava fadado a morrer, como se tivesse sido alvejado pela vítima agonizante, livrando a mulher de quaisquer suspeitas.

O terceiro e último episódio é dirigido pelo próprio roteirista Fraga. Em Júlio e o Paraíso, o mais velho dos marinheiros é abordado na rua por um grupo de moças hippies, que mendigam alguns trocados por estarem famintas. Com pena, leva o grupo para jantar em uma churrascaria, onde conta suas histórias e vivências. Acaba na casa das garotas, que resolvem “dar-lhe uma surra de boceta”, conforme uma delas diz. É o episódio com maior tempo de cenas de nudez e sexo, começando quando Júlio é chamado por uma das jovens para tomar banho, passando por uma seqüência de lesbianismo e terminando em uma maratona em que Júlio passa pela mão (e outras partes) de todas as moças. Na verdade, elas pretendem matá-lo de exaustão para ficar com seu dinheiro e saldar as dívidas de aluguel antes de serem postas na rua. Sendo assim, não largam de Júlio, se revezando sobre ele até o último suspiro. O filme termina com o corpo do marinheiro coberto por folhas de jornal, cercado de velas. Inspirado, Ody Fraga realiza uma poderosa analogia com narrativas da antiguidade clássica, com ecos das bacantes, ensandecidas adoradoras do deus Dionísio que se entregavam aos excessos do sexo e da violência. Na construção de um universo de simbolismos, Fraga se perde um pouco no falatório pseudo-filosófico do protagonista.


Mais informações sobre David Cardoso e a DaCar, na biografia elaborada por Alfredo Sternheim para a Coleção Aplauso “David Cardoso: Persistência e Paixão” (Imprensa oficial, 2004) e na “Autobiografia do Rei da Pornochanchada: David Cardoso” (Letra Livre Editora, 2006). Recomendo também meu texto sobre o Pasteleiro, capítulo do livro Cinema de Bordas 1 (Editora A Lápis, 2006).