sábado, 31 de outubro de 2009

A última loucura de Petter Baiestorf.



Em meados dos anos 1990, quando ainda publicava o B Zine, fanzine dedicado aos filmes de horror que xerocava mensalmente e divulgava pelo correio, tive conhecimento de um louco catarinense que fazia filmes de baixíssimo orçamento e muita coragem, com títulos estranhos e sugestivos como Criaturas Hediondas e O Monstro Legume do Espaço. Naquele tempo, devemos lembrar, com a popularização das câmeras de vídeo e a moda do trash, muitos jovens se dedicaram a realizar vídeos caseiros, tentativas que geralmente flertavam com o que se convencionou chamar de gêneros cinematográficos e transitavam entre a brincadeira e a devoção. Muitos ficaram para trás, suas vãs experimentações perdidas no tempo, seus nomes desconhecidos e os registros destruídos pelo mofo, inimigo número um das velhas fitas VHS.

O que não foi o caso de Petter Baiestorf, o genial lunático e obstinado cineasta que venho acompanhando desde então, sempre me surpreendendo com os rumos de uma produção inconformista e dinâmica – fatores que foram essenciais para a evolução de um trabalho difícil de ser categorizado. Não vou me deter na trajetória de Petter, na qual me detive durante a redação do capítulo "Eles comem sua carne: o cinema canibal-escatológico de Petter Baiestorf", que escrevi para o livro Cinema de Bordas 2 (Editora A Lápis, 2008 - disponível nas melhores livrarias virtuais).

Na verdade, o que motivou essa postagem foi o novo filme de Petter, Ninguém deve morrer, obra que ao mesmo tempo reafirma o caráter autoral da produção do realizador, mas também caracteriza, em termos técnicos, a nova fase (resultado da parceria com o talentoso Gurcius Gewdner) que já rendeu frutos como Arrombada e Vadias do Sexo Sangrento. Caráter que, se remetermos aos conceitos de cinema de autor, é pontuado por uma assinatura deixada através de elementos marcantes que permanecem inerentes a toda filmografia de Petter, mesmo esta se renovando,tomando rumos diversos e se superando continuamente. Principalmente devido a seu discurso, que reflete uma filosofia bastante singular e perfaz um autêntico cinema de guerrilha.

A narrativa básica de Ninguém deve morrer é a do western, ou se preferirmos, a de um faroeste caipira: uma trama rural (meio que o diretor freqüentemente esculhamba) de vingança e amores perdidos que explode em violência estilizada (mais contida que nos filmes anteriores). Narrativa que serve de pano de fundo para um ousado e inusitado musical.

A grande sacada é o modo como Petter se apropria da gramática do cinema – que conhece a fundo – e os recicla de acordo com os cânones de seu universo, utilizando elementos seminais da cultura popular, como a música brega e diálogos retirados de filmes que homenageia e utiliza para dublar algumas passagens. Metalingüístico, não esconde o dispositivo, culminando com a inserção de cenas fotográficas do tornado que devastou a região e resultou na interrupção das tomadas.

Obra que reflete a maturidade estilística do cineasta e nos atrai, com sua trilha sonora escolhida a dedo – sem dúvida um dos pontos fortes -, e algumas seqüências já antológicas. Dentre elas o diálogo inicial entre o personagem de Gurcius (o cowboy Ninguém) e sua amada, tendo ao fundo atores travestidos fazendo uma desajeitada coreografia; e a atriz Lane ABC carregando sobre a cabeça, cruzados, os braços amputados de Ninguém, personificação de uma guerreira pagã com seu estandarte contra as hostes do obscurantismo. Não posso deixar de citar a presença fortuita de atores emblemáticos do mundo baiestorfiano, como o gordão Jorge Timm, Coffin Souza e Ljana Carrion como um dos “caras malvados”.

Vida longa a Petter Baiestorf, principalmente num momento em que o estéril cinema brasileiro carece de ousadia, criatividade e inteligência.