terça-feira, 21 de julho de 2009

Bruxaria no Cinema - Parte 1


Aproveitando as férias, e para não ficar sem postar, resolvi re-publicar uma matéria que escrevi há alguns anos para uma revista que acompanhava um DVD desses de banca. Divirtam-se.
O caráter mais espetacular do cinema, desde os tempos dos primeiros realizadores, foi a capacidade de levar às telas o fantástico, configurado então - e de modo surpreendente, se nos deslocarmos para o final do século XIX e início do XX – pela exibição e manipulação de imagens em movimento. Os nascentes truques, hoje simples, conferiam uma aura mágica e passaram a ser explorados pelos pioneiros de então, revestindo essas técnicas de significado. Não demorou para que as criaturas sobrenaturais, habitantes do imaginário coletivo, fossem incorporadas e exploradas, pela compreensível adequação ao novo meio. E para que a principal dentre as entidades que sempre atemorizaram o homem ganhasse corpo nas telas: Satã. Figura controversa pela própria capacidade de causar terror enquanto cativa, ganha corpo em filme através da genialidade de Georges Méliès em Le Manoir du Diable (1896).
As primeiras representações do Diabo no cinema, como não poderiam deixar de ser, estavam impregnadas do imaginário cristão, eternizadas a partir da Idade Média através da iconografia, tanto em seu aspecto mais aterrador como uma mistura de bode e homem – apropriação do Pan das florestas pagãs – como na forma sinistra e por vezes debochada de um homem alto, de bigodes pontudos, algumas vezes ostentando chifres, como nos velhos espetáculos itinerantes ao estilo da Commedia dell’ Arte. E se Satã, em seu sentido mais senso comum, passou a freqüentar as telas, o que dizer então de seus principais agentes - também bastante arraigados na cultura popular e narrativas ficcionais: as bruxas e feiticeiros?
É bom lembrarmos que a bruxaria é tão antiga quanto a humanidade e só passou a ser vinculada ao Diabo por obra e graça do Cristianismo. S. Paulo já identificava os deuses pagãos greco-romanos com demônios, alertando contra associações com esses seres. O que foi aceito como verdade incontestável pela nascente religião e acabou, séculos mais tarde, culminando nas perseguições, torturas e assassinatos perpetrados pela Santa Inquisição. Isso deu margem a todo um manancial de lendas e crendices sobre as praticantes dos antigos cultos, que ganharam corpo devido à fértil imaginação dos relatores e clérigos do período. Essa alegoria personificada por bruxas e demônios pode ser vista já em 1921 na obra prima do dinamarquês Benjamin Christensen, Häxan (1). O diretor recria, através de episódios entrelaçados e estilo semi-documental, o que seria a história da feitiçaria. Através de poderosas e arquetípicas imagens, Christensen retrata todo um universo folclórico de diabos chifrudos, bruxas voando em vassouras, preparando sortilégios ou reunidas em sabbaths. O alto teor de sexualidade inerente a estas fantasias está presente – um positivo libelo de rebeldia contra a repressão sexual da Igreja -, assim como um retrato nada abonador do clero, com seus padres obtusos e freiras facilmente desencaminhadas, todos alvo fácil para as artimanhas do Demo. Não é para menos que o caráter anti-clerical de Häxan tenha escandalizado a platéia na época de seu lançamento e fosse reabilitado durante a contracultura dos anos 60, principalmente por seu conteúdo contestador e pelas mais significativas representações de bruxaria nas telas, ainda hoje insuperáveis. Infelizmente, a maior parte das produções que se seguiram nas décadas posteriores, se rendeu ao senso comum e ao maniqueísmo da luta das forças do bem (representando o lado mais conservador da sociedade) contra o mal (aspectos desagregadores, e por que não, contra o status quo dominante). Como o nosso espaço é limitado, vamos nos deter em alguns filmes que consideramos significativos para uma visão geral do tema.
A primeira cerimônia satânica filmada vêm à luz ainda nos anos 30, na produção da Universal O Gato Preto (The Black Cat/1934), dirigida por Edgar Ulmer e repleta de referências ao cinema alemão, que já flertara com o satanismo com as duas versões de O Estudante de Praga (Der Student von Prag, 1913, 1926) e Fausto (Faust, 1926), de F.W.Murnau. Ulmer dirige Boris Karloff e Bela Lugosi no auge de suas carreiras. O primeiro interpreta um veterano da Primeira Guerra, Hjalmar Poelzig, que vive em um palacete (nítida influência expressionista), onde dá abrigo a um casal americano de férias e a um antigo desafeto e ex-comandado, o Dr. Vitus Werdegast (Lugosi). Na verdade, Poelzig é o sumo sacerdote de uma seita diabólica e seus planos incluíam sacrificar a jovem americana durante um ritual. A estilizada missa negra se realiza nos porões da mansão, onde o personagem de Karloff entoa cânticos e balbucia expressões em latim, entre acólitos vestidos cerimonialmente. O Gato Preto também foi em parte inspirado no polêmico ocultista inglês Aleister Crowley (1875-1947), que antes já servira de molde para The Magician (1926), de Rex Ingram, adaptado da obra de Somerset Maugham.

Continua...
(1) Sobre Häxan, recomendo a leitura de meu artigo na publicação "Cadernos da Pós-Graduação" do Instituto de Artes da Unicamp, ano 8, vol. 3, n. 3 - 2006.

Trecho de Häxan:

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